Saúde única: perspectivas para O enfrentamento da covid-19

Authors

  • Kellyn Cavalcante Universidade Federal do Ceará
  • Jarier de Oliveira Moreno
  • Francisco Roger Cavalcante
  • Reagan Nzundu
  • Francisco Gustavo Silveira Correia
  • Caroline Mary Gurgel Dias Florêncio
  • Carlos Henrique Alencar

Keywords:

COVID-19, SARS-CoV-2, Saúde Única, Vigilância Epidemiológica

Abstract

Os especialistas têm traçado cenários sobre o avanço da COVID-19 no mundo e seus múltiplos impactos. Diante da complexidade do cenário atual do mundo, é fundamental ter uma visão estratégica do contexto da COVID-19 e suas possíveis perspectivas na saúde.

Em dezembro de 2019 foram detectados casos de pneumonia atípica de etiologia desconhecida na cidade de Wuhan (China) que viria a ser chamada de COVID-19, doença causada pelo coronavírus denominado SARS-CoV-2 [1, 2]. Casos sintomáticos apresentam uma síndrome respiratória aguda, com quadro inicial semelhante a uma série de outras doenças comuns no período outono-inverno, como o vírus influenza [3].

O SARS-CoV-2 é transmitido de pessoa a pessoa por meio de gotículas de saliva ou secreção nasal [4]. Ainda não existem vacinas ou terapias específicas para a COVID-19; muitos ensaios clínicos atualmente em andamento avaliam possíveis tratamentos [2, 5, 6].

A disseminação do SARS-CoV-2 afetou a economia ao incentivar o distanciamento social, o que levou ao fechamento dos mercados financeiros, escritórios corporativos, diversas empresas e eventos. A severidade foi sentida em vários setores da economia por meio de restrições e proibições em diversos setores da sociedade, desde a indústria da aviação, eventos esportivos, e até mesmo para empresas de entretenimento [7].

Ressalta-se que a vigilância é uma potente ferramenta de identificação de possíveis mudanças nas características das doenças que fazem a transição de sua transmissão exclusiva em animais e passam a circular, também, em seres humanos, efeito chamado de “Spillover”, que pode ser traduzido para o português como “transbordamento interespecífico” [8].

No entanto, ainda há muitas lacunas no conhecimento sobre a transmissão da COVID-19 de animais para humanos, bem como o papel destes animais para a dinâmica da epidemia. Estudos relacionados à SARS, MERS e, recentemente, à COVID-19, têm associado um papel importante das zoonoses nestas epidemias [9, 10].

A possibilidade do spillover leva a uma reflexão para se alcançar uma Saúde Única, com intercessão entre as saúdes ambiental, animal e humana como um aspecto importante para a doença COVID-19. Nesse contexto, objetivou-se descrever o papel da Saúde Única no enfrentamento da COVID-19.

Na busca de fatores causais para o desequilíbrio do processo saúde–doença nas populações, Calvin Schwabe descreveu na década de 1980 a importância da multifatorialidade advinda da associação animal–homem–ambiente em seu livro “Veterinary Medicine and Human Health”, que adotou o termo “One Medicine” [11] que, no ano de 2007, passou a ser conhecida como “One Health”, durante a conferência ministerial internacional sobre Influenza Aviária e Pandêmica, realizada em Nova Deli, Índia.

Embora o termo “Saúde Única” seja relativamente novo, o mesmo já é reconhecido nacional e mundialmente. Desde o século XIX, observa-se a semelhança nos processos de doenças entre animais e humanos, porém as medicinas humana e animal foram praticadas separadamente até o século XX [12].

O conceito de Saúde Única enfatiza que a saúde das pessoas está intimamente ligada à saúde dos animais e ao ambiente compartilhado. Essa forma de abordagem tornou-se mais importante nos últimos anos com o crescimento e a expansão das populações humanas para novas áreas geográficas, alterações no clima e no manejo da terra, como desmatamento e práticas agrícolas intensivas. Estes e outros fatores desencadearam mudanças nas interações entre pessoas, animais e o ambiente [13]. Os problemas de saúde não podem ser efetivamente tratados de forma isolada: a abordagem sobre Saúde Única é colaborativa, multidisciplinar e multissetorial, aperfeiçoando soluções para zoonoses e outras ameaças à saúde, local e globalmente.

Fatores intrínsecos e extrínsecos estão relacionados às dinâmicas de transmissão dessas doenças, como: as mudanças no ambiente urbano, a transição epidemiológica que vem ocorrendo no mundo com a crescente urbanização, além da exposição a novos patógenos [14].

Nas ações de vigilância aos fatores de risco biológico, fazem-se necessárias a identificação e a mensuração dos determinantes ambientais, seja pela força da natureza ou pela ação antrópica que, em situações de desequilíbrio, podem interferir no surgimento de doenças [15]. Diante disso, as zoonoses merecem destaque, e o animal pode ser definido como o fator de risco biológico, que constitui elo importante na cadeia de transmissão ao ser humano e a outras espécies. Isso pode causar não apenas danos à saúde, mas também ao ambiente, à sociedade e à economia [12].

Doenças zoonóticas são comumente disseminadas na interface humano-animal-ambiente, onde, muitas vezes, as pessoas e os animais compartilham o mesmo ambiente. Transmitidas por alimentos, água, contato direto com animais, fômites ou contaminação ambiental, estima-se que as zoonoses causem aproximadamente 2,5 bilhões de casos e 2,7 milhões de mortes [16].

No mundo, 75% das doenças emergentes têm sua origem associada aos animais e, dentre as 117 doenças consideradas de relevância à saúde animal, 60% delas têm origem zoonótica [7, 16, 17]. Com a finalidade de melhorar a transparência das informações sobre essas doenças no mundo, a Organização Mundial de Saúde Animal (World Organisation for Animal Health/ Office International des Epizooties-OIE) monitora 53 doenças infecciosas e não infecciosas no ambiente silvestre para fins de vigilância epidemiológica e proteção da saúde animal e humana [18].

A disseminação de novos vírus entre diversas espécies de hospedeiros para o homem apresenta potencial pandêmico, uma vez que são mais adaptados à transmissão entre humanos [19]. Considerando que o vírus pode ser transmitido por humanos, produzir casos secundários e estabelecer novas cadeias de transmissão, os eventos de Spillover da COVID-19 corroboram a hipótese de que os seres humanos estão inseridos diretamente na cadeia epidemiológica de transmissão zoonótica [20].

Vários são os agentes que possuem essa característica de transpor a sua espécie de origem e oferecer risco aos humanos. Dentre eles, os vírus respiratórios influenza A e coronavírus têm se mostrado relevantes para a saúde pública mundial devido ao potencial pandêmico [21].

A família Coronaviridae é constituída por vários gêneros e espécies, sendo que pelo menos quatro: 229E, OC43, HKU1, NL63 estão associadas ao resfriado comum e outras síndromes respiratórias. Estes vírus são responsáveis por até 30% de todos os casos de infecção respiratória em períodos epidêmicos no mundo [22, 23]. No entanto, acredita-se que esse valor seja maior, visto que muitos painéis para pesquisa de vírus respiratórios não incluem os coronavírus [24].

A maioria dos coronavírus infecta naturalmente apenas uma espécie animal ou, no máximo, um número limitado de espécies: alfa-coronavírus e beta-coronavírus infectam mamíferos, enquanto gama-coronavírus e delta-coronavírus apresentam maior casuística entre aves, também podendo ser transmitidos aos mamíferos [25]. O SARS-CoV é uma exceção à regra, pois infecta uma variedade de mamíferos, incluindo humanos, primatas não-humanos, civetas, guaxinins, gatos, cachorros e roedores [26, 27], assim como o MERS-CoV pode infectar seres humanos e camelos ou dromedários [21, 28].

Os surtos de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARS-CoV) ocorridos entre 2002 e 2003 na província de Guangdong (China) e o da Síndrome Respiratória do Oriente Médio (MERS-CoV) nos países do Oriente Médio, apresentaram morcegos como hospedeiros naturais dos vírus [9]. Embora ainda preliminares, os dados atuais sugerem que os morcegos são a fonte mais provável da pandemia pelo SARS-CoV-2. Estudo com dois casos humanos de SARS-CoV-2 do recente surto na província de Wuhan encontrou uma similaridade genética de aproximadamente 97% com coronavírus circulando em Rhinolophus sp (morcegos-ferradura) [6, 20, 29]. Apesar de terem o morcego como potencial animal em comum, a similaridade entre os vírus é de aproximadamente 79% entre SARS-CoV e SARS-CoV-2 e, aproximadamente, 50% entre SARS-CoV-2 e MERS - CoV [30-32].

Casos confirmados em outros animais foram identificados em várias partes do mundo: uma tigresa com tosse seca em um zoológico em Nova York; dois cães na cidade de Hong Kong e um gato na Bélgica. Em todas estas situações, os animais tiveram contato com pessoas doentes. Situações semelhantes já haviam sido detectadas na epidemia de SARS na China em 2002 e na epidemia de Ebola na África Ocidental [15].

Estudos na China, embora ainda sem validação científica, mostram uma tendência de transmissão do coronavírus para outros animais, mas com baixa taxa de replicação em cães, suínos e aves, sendo mais eficiente em furões e gatos. Inoculações do SARS-CoV-2 em gatos e autópsia após alguns dias mostraram que o vírus se multiplicou nas vias aéreas superiores, porém sem apresentação de sintomas típicos da doença. Este mesmo estudo demonstrou que felinos infectados contaminaram um gato sadio que estava na jaula ao lado, sugerindo a transmissão por gotículas respiratórias [33]. Uma pesquisa realizada em 100 gatos na cidade de Wuhan após a primeira onda do surto encontrou anticorpos contra o novo coronavírus em 15% dos animais, porém este estudo também não possui validação externa até o momento [34].

A integridade dos ecossistemas bloqueia naturalmente a disseminação de patógenos, dada a consolidação dos nichos ecológicos por milhares de anos. O aumento da demanda por capital leva a uma exploração mais exacerbada de florestas pela indústria madeireira, mineradora e pelo agronegócio, destruindo ecótonos e desrespeitando zonas de amortecimento que separam os humanos dos animais e dos patógenos que estes abrigam [35].

No Brasil, a Mata Atlântica é um dos biomas mais ricos em biodiversidade, e também o mais ameaçado. A sua composição original era um mosaico de florestas umbrófilas, estacionais e decíduas; campos de altitude, mangues e restingas. Estimou-se que 91,5% deste bioma foi destruído, principalmente devido à intensa exploração dos recursos para exportação durante o período colonial e imperial. Atualmente, há uma elevada aglomeração humana, cerca de 70% da população brasileira ou 112 milhões de pessoas, que exerce uma forte pressão no avanço desta destruição [36]. Em recentes publicações do atlas dos remanescentes florestais e ecossistemas associados da Mata Atlântica, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) vem apontando uma forte intervenção humana sobre a vegetação, com desmatamento sem controle e fragmentação florestal somados ao baixo índice de áreas em regeneração [37].

O risco de adquirir uma infecção zoonótica está diretamente ligado à carga patogênica transportada por indivíduos hospedeiros do reservatório, ou à estimativa da abundância cumulativa de um patógeno no ambiente ao longo do tempo. Como exemplos, têm-se os patógenos Leptospira interrogans, Giardia spp. e Escherichia coli, os quais dependem das relações de contato e dose-resposta em humanos [9].

A efetiva resposta para as doenças zoonóticas envolve os setores ambiental, da agricultura e da saúde; entretanto, o que vem se desenvolvendo a nível governamental são fracas posturas políticas, com grande distanciamento entre as políticas públicas e a sua operacionalização. O controle dessas enfermidades requer um arcabouço legal e político, instituições engajadas, financiamento adequado e plano de intervenção célere [38]. Intervenções em saúde pública bem sucedidas requerem a interação de profissionais em saúde humana (médicos, enfermeiros, profissionais de saúde pública, epidemiologistas), saúde animal (veterinários, trabalhadores agrícolas) e ambiental (biólogos, especialistas em vida selvagem) [39].

Pesquisas têm demonstrado formas integradas de avaliação do risco de doenças com interface antrópica, pecuária e silvestre como forma de melhor alocar recursos [40, 41]. A proximidade entre seres humanos, vida selvagem, alta densidade de populações de bovinos, perda de habitat silvestre, degradação ambiental e mudanças climáticas são fatores de risco para a disseminação de patógenos associados ao ambiente silvestre [42].

Estruturas de vigilância à saúde multissetoriais terão abordagens rápidas e eficazes para o controle das doenças zoonóticas. A montagem seguida da adequação desses sistemas de vigilância envolve transparência de informações para todos os setores, responsabilidades compartilhadas para tomada de decisão, regulamentos, políticas e diretrizes realistas e implementáveis, compreensão das funções e responsabilidades específicas, além de recursos técnicos, humanos e financeiros efetivamente usados e compartilhados de forma equitativa. Tudo isso deve ser direcionado para o preenchimento de lacunas quanto à infraestrutura, capacidade de trabalho e processamento de informações [7].

Os serviços de saúde animal têm contribuído para a construção de uma resposta comum à pandemia de COVID-19. Os laboratórios vêm usando sua experiência e conhecimento em alta capacidade de teste de doenças infecciosas no engajamento de atividades como triagem de vigilância, testagem de amostras humanas, dando suporte à capacidade de diagnóstico dos serviços de saúde humana [39].

Em um processo de expansão geografia e demográfica da contaminação da COVID-19, é de suma importância discutir o papel da Saúde Única no enfrentamento da doença, considerando uma possível interseção entre homem, animal e meio ambiente no ciclo de transmissão.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Published

2020-05-18

How to Cite

Cavalcante, K., de Oliveira Moreno, J. ., Cavalcante, F. R. ., Nzundu, R. ., Silveira Correia, F. G., Gurgel Dias Florêncio, C. M. ., & Alencar, C. H. . (2020). Saúde única: perspectivas para O enfrentamento da covid-19. InterAmerican Journal of Medicine and Health, 3. Retrieved from https://iajmh.com/iajmh/article/view/117

Issue

Section

COVID-19 in debate